Vivência
"Viva a vida!"
De acordo com Boletim Epidemiológico da Aids e HIV de 2018, realizado pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), o número de mortes relacionadas à Aids no estado vem diminuindo com o passar dos anos. Entre 2015 e 2017, a mortalidade de soropositivos caiu de 4,5 para 3,9 em cada 100 mil habitantes. Em 2018, até o mês de novembro, o estado registrou 247 óbitos por causa da infecção, 103 a menos que o ano anterior.
Embora os números tenham reduzido, entre 2008 e 2018, 3.417 pessoas morreram por complicações de saúde ligadas a Aids apenas no estado. Para o infectologista Anastácio Queiroz, a cura para a infecção não é mais debatida como antes. “Nós acreditávamos que a cura da Aids viria antes dos anos 2000, depois achamos que seria descoberta na década de 2010 e agora nem se fala mais no assunto”, lamenta.
Mais que sobreviver a outro ano, a população soropositiva tenta viver após o diagnóstico. A solidão, a discriminação e a privação de saúde pelo seu estado sorológico consomem Maria*, 50, hoje diagnosticada com depressão. A felicidade que levava na Itália continua em sua memória. Quando descobriu ser soropositiva, em 1998, o seu casamento chegou ao fim: “ele me deixou no momento em que soube”, conta. O então marido de Maria a mandou de volta para o Brasil, e desde então ela sonha em reencontrá-lo.

(Ilustração: Raquel Sant'Ana.)
Eu moro sozinha porque a minha família tem preconceito comigo, e minhas amigas me abandonaram”, conta Maria
Ao retornar para o país de origem, ela não encontrou o suporte esperado. “Eu moro sozinha porque a minha família tem preconceito comigo, e minhas amigas ainda me abandonaram”, relata com tristeza. “Eu tentei suicídio 10 vezes por não aceitar a doença, mas pensei muito na minha filha e nos meus dois netos”, que mesmo morando em outro estado, são a família e apoio de Maria.
Além do cansaço emocional, ela enfrentou a dor física causada pelo tratamento. “Foi muito difícil para o meu organismo aceitar a medicação. Eu tive 65 internações causadas pelos efeitos colaterais dos comprimidos”. Após várias tentativas, hoje ela encontrou o medicamento adequado ao seu corpo. “Eu não vivo sem os remédios, não durmo sem tomar. Eu vou viver”. Mesmo em terapia medicinal e após 20 anos com HIV, a infecção e preconceitos ainda a deixam insegura.
Mas também há quem encontre em seu estado sorológico novas razões para resistir. “Ainda existe preconceito com alguns da família, mas o importante é que hoje eu me aceito e me assumo como soropositivo. Tem sido uma luta, mas eu estou com saúde”, garante Augusto*, 43. Como forma de ajudar seus amigos também soropositivos, ele administra cinco grupos no WhatsApp para repassar informações e pautas públicas sobre o HIV e Aids. “A gente soma, qualquer ajuda é boa”, ressalta.
O engajamento de Augusto o permitiu encontrar seu atual namorado. A aproximação dos dois aconteceu por ambos viverem com HIV. Se agora ele é seguro nem sempre foi assim. Augusto relembra que por seu estado sorológico enfrentou dificuldades para encontrar um companheiro. “Tem pessoas que têm medo de se relacionar com alguém que tem HIV ou Aids”.
Mas discriminar uma pessoa que vive com Aids ou HIV é crime no Brasil. A Lei Federal nº 12.984 prevê reclusão de um a quatro anos e multa para quem praticar preconceito contra esses grupos. A falta de informação e diálogo sobre a Aids e HIV leva ao medo e a discriminação, mas o infectologista Anastácio Queiroz garante: “o beijo social, o abraço, a conversa não transmite Aids nunca”.
“o beijo social, o abraço, a conversa não transmite Aids nunca”, garante o médico Anastácio Queiroz.
O atual namorado de Cláudia* sabe e respeita o seu estado sorológico. “Sempre que a gente quer alguém, tem que falar que é soropositivo, não pode omitir”, ela alerta. Cláudia redobra os cuidados durante as relações sexuais com o companheiro sorodiscordante. “A gente usa a camisinha direto. Não pode deixar de usar um segundo, tem que usar para prevenir”, explica.
Casal sorodiscordante
Um casal sorodiscordante é aquele em que um parceiro vive com HIV e o outro não.
(Guia de Termologia do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS - Unaids)
Letícia* reagiu com leveza ao descobrir ser HIV+. O convívio com amigos soropositivos antes de seu diagnóstico a ajudou a aceitar sua sorologia. “Eu vivo tranquilamente. Todo mundo pode conviver bem com o vírus desde que trate”. Agora ela apoia os novos diagnosticados com seu bom humor e empatia. “A psicóloga questionou como eu conseguia dar forças para quem estava fazendo o exame, para mim não é uma coisa de sete cabeças, de outro mundo”, conta.
Enquanto a cura ainda não foi descoberta, a população soropositiva do Ceará conta com o apoio de Organizações Não Governamentais e Instituições Sem Fins Lucrativos. A Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV e Aids (RNP+) é uma delas. Com o propósito de auxiliar no pós diagnóstico e acompanhar as políticas públicas que envolvem o tema, a instituição de nível nacional funciona no estado há 21 anos. “É uma rede formada só por pessoas com HIV. Do presidente ao membro, todos são soropositivo”, se orgulha Vando Oliveira, coordenador estadual da RNP+.
Mensalmente, a Instituição recebe 1.200 pessoas “em alto grau de vulnerabilidade social” e presta serviços de prevenção, tratamento, assessoria jurídica, auxílio psicológico e informação. “Fazer isso não é fácil. Se luta todo dia para estar vivo”, relata Vando Oliveira. Para ele, o seu trabalho também é visibilizar o HIV. “Não é sair falando que é portador do HIV ou que tem Aids. É não se envergonhar de ser quem é. O preço que se paga por falar que é soropositivo é a exclusão”, comenta.
E movidas por essa necessidade de se sentir incluída que todas as pessoas soropositivas que entrevistamos se reúnem na RNP+. Mais que o estado sorológico, elas têm em comum a vontade de viver e ser respeitadas, e encontram na instituição o apoio para continuar. “Faz oito anos que venho para a RNP, o auxílio que recebo aqui é importante para seguir bem”, conta Maria.
“Viva a vida” é o grito de guerra da RNP+. A fala ecoa por todos os membros da Instituição e confirma sua principal luta: que não falte tratamento para os pacientes do estado. “Eu não sou só uma doença, eu sou uma pessoa. A gente vive com HIV, mas não quer morrer de Aids”, diz Vando emocionado. A sua preocupação é a mesma de todos os soropositivos.

Reunião da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS. (Fotografia: Thiago Mourão)
Leia aqui a carta de princípios da RNP+
(Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS)